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domingo, 26 de julho de 2009

Viajar é preciso Fragatas para Terras Distantes (Record, 2004), de Marina Colasanti.



Viajar é preciso
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil / PB)

Não há melhor fragata que um livro
para levar-nos a terras distantes.
(Emily Dickinson)

A editora Record atendeu a meu pedido e me enviou um livro há muito tempo desejado – Fragatas para Terras Distantes (Record, 2004), de Marina Colasanti. Ao recebê-lo, lembrei-me de Pedro Nava quando se referiu à aquisição dos livros que povoavam suas estantes:
“A aquisição de cada um foi o resultado de longas espreitas, pesquisas, paqueras, paciências e esperas – como na conquista das amadas”. (Galo-das-trevas.1987:49).
Chegou-me à noite e nessa mesma noite adentrei-me na leitura que me conduziu a terras distantes, mergulhei nos poéticos ensaios de Marina Colasanti e saí da leitura disposta a escrever mais um artigo sobre o desejado livro.
Composto de 17 ensaios que falam sobre leitura, alguns textos foram apresentados em congressos e seminários; outros integram artigos publicados em jornais e prefácios de livros. Vamos pinçar fragmentos e tentar despertar no leitor o desejo de ler o livro na íntegra.
“O real mais que real” é o primeiro artigo, e foi apresentado no Segundo Congreso de las Américas de Lectoescritura, em San José, Costa Rica, em 1995. Vale a pena transcrever a observação de Marina Colasanti sobre o conto “A pequena sereia” de Andersen:
A história da pequena sereia criada por Andersen não é uma história qualquer. É uma doce e maravilhosa parábola da vida. E se faz tanto sucesso com as crianças do mundo inteiro, que certamente não praticam os desmontes conscientes a que nós adultos e, sobretudo nós criadores e estudiosos da literatura somos levados, é porque as parábolas, como as metáforas, pertencem à linguagem dos sonhos, do imaginário. E não necessitam de desmontes para serem apreendidas. (p. 24)
“No mundo da magia se come rosbife” foi publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 2001, e, nesse texto, Marina discorre sobre a série Harry Potter e discute dois aspectos dos livros de Rowling: o mercado e o conteúdo.
No primeiro caso, ela afirma que os livros de J. K. Rowling vêm revestidos de uma grande onda de publicidade: outdoors, cartazes, anúncios de páginas inteiras, vitrinas especiais nas livrarias para expor os livros que se transformam em verdadeiros best sellers. São palavras de Marina Colasanti:
Harry Potter representa, portanto, uma virada no mercado editorial. A partir dele, instala-se a possibilidade de livros para crianças serem trabalhados ao mesmo tempo em vários países, em grandes lançamentos agressivos e coordenados, visando a vendas estratosféricas. Exatamente como certos livros para adultos. (p. 48).
Quanto ao conteúdo, Marina discorda do crítico norte-americano Harold Bloom que não considera os livros de Rowling bem escritos, ressaltando a presença de clichês. Reconhece que tem menos autoridade do que Bloom, mas vislumbra aspectos positivos nos livros da série Harry Potter e aponta: “poucas descrições e muitos diálogos”. Afirma ainda que a linguagem oral e o ritmo acelerado tornam os livros de Rowling palatáveis. Como convém a livros de série, eles deixam a porta aberta para a próxima rodada.
“Um espelho para dentro” foi apresentado no Encuentro de Escritores Brasileños, Casa de América, Madri, 2003.
Neste texto, a escritora se utiliza da metáfora do espelho para revelar o seu próprio eu. Partindo da pergunta: “Espelho, espelho meu, que escritora serei eu?” (p. 105), Marina, como a personagem Madalena, de Graciliano Ramos, no romance “São Bernardo”, se revela pouco a pouco e nunca se revela inteiramente.
Em seguida, fala sobre sua produção literária, seus livros, sua gênese, seu gosto pelos contos de fadas. Mas... depois de muito escrever, um dia ela se interroga:
Espelho, espelho meu, voltei a perguntar há exatos dez anos, o que foi que a escrita ainda não me deu”?
E o espelho respondeu: a poesia. (p.110)
Foi a partir da reflexão de não ser poeta que ela resolveu escrever o primeiro livro de poesias – Rota de Colisão e sentiu que a poesia estava no seu rumo, pois é na poesia, mais do que em qualquer outro gênero, que podemos beijar o lado de dentro das palavras. (p.110)
Nesse encontro, Marina Colasanti encerrou suas palavras com uma poesia. Era mais uma face do espelho que se fazia representar.
O último texto do livro “Que escritora seria eu se não tivesse lido?” foi apresentado no Simpósio Internacional Transdisciplinar de Leitura no Rio de Janeiro, em 2000. Algumas revelações feitas por Marina merecem registro. Ao falar sobre sua mãe e as leituras da infância, ela faz esta afirmativa:
Minha mãe não contava, inventando o texto ao sabor da fala. Ela lia. O encantamento da narrativa me chegou através da palavra organizada em escrita, e amei as palavras tanto quanto amei as histórias. Eu li ouvindo, quando ainda não podia ler. Para despir-me da leitura, totalmente, até a isso deveria renunciar. (p.248)
Hoje, adulta, a escritora diz que ler como “triatlo”. Acorda de manhã e perde no mínimo uma hora lendo jornais. Será que ela está perdendo mesmo tempo ou está se atualizando com as noticias do Brasil e do mundo?
Em uma segunda etapa, a escritora vai para o escritório e começa a ler o material de trabalho e pelo dia afora vai lendo e escrevendo. Reconhece que como leitora/atleta não é disciplinada, perde tempo lendo coisas inúteis e o pior é que esquece a grandíssima parte do que ler.
O livro se encerra com uma pequena nota da autora que utilizamos para colocar ponto final neste artigo:
[...] quando se chama um escritor para falar da escrita, o que se espera dele não é uma visão ‘de fora’ puramente teórica, mas o relato daquele percurso interior que lhe tornou a escrita possível. http://www.megaupload.com/?d=IUOBVTT6

domingo, 19 de abril de 2009

Marcus Accioly – um poeta nordestinado


Marcus Accioly – um poeta nordestinado
(Neide Medeiros Santos – Professora e Crítica Literária – FNLIJ/PB)

“... nordestinados somos todos nós – nordestinos, brasileiros, latinamericanos – porque este destino de Nordeste é a própria condição de NossAmérica.”
(Marcus Accioly. Capa do disco Nordestinados. A palavra que volta ao canto. Discos Chantecler s/d).

Marcus Accioly, que este ano completa 40 anos de poesia, é considerado uma das grandes vozes poéticas do Nordeste. A produção literária do autor abrange mais de 10 títulos: Cancioneiro (1968); Nordestinados (1972); Xilografia (1974 – livro de poemas com gravuras do folhetinista e xilógrafo José Costa Leite); Sísifo (1976); Íxion (1978); Guriatã: um cordel para menino (1979- com xilogravuras de Dila); Ó de Itabira (1980); Érato (1983); Narciso (1984); Latinomérica (2001). Accioly ainda escreveu dois pequenos livros para o público infantil – ABC dos Bichos e P (B) ara (ti) nação.
Nas Notas ao Leitor, inseridas no livro Narciso, Accioly divide parte de sua obra poética de acordo com os quatro elementos da natureza. Cancioneiro, Nordestinados e Guriatã: um cordel para menino estariam ligados à terra; Sísifo ao ar; Íxion ao fogo; Narciso à água. Teceremos alguns comentários sobre a fase ligada à terra.
A publicação de seu livro primeiro livro, Cancioneiro, o autor deve ao crítico literário e poeta César Leal, seu orientador poético e, como ele mesmo tem afirmado em diversas ocasiões, pai de sua geração. Com relação à receptividade crítica a esse livro, Nelly Novaes Coelho afirma que é uma tentativa de nomeação do novo Real e revela uma nova consciência épica.
Seguindo as trilhas de Cancioneiro, o segundo livro, Nordestinados, mergulha nas raízes populares e amplia o universo épico narrativo já detectado na obra anterior. Nelly Novaes Coelho saudou esse livro com um brilhante ensaio – Nordestinados: A Palavra que Nasceu do Canto.
A respeito do título Nordestinados, Marcus Accioly apresenta a seguinte explicação para o termo:
O neologismo nordestinado (que inventei no singular e usei no plural como título) deixa de ser espécie para tornar-se gênero: nordestinados somos todos nós – nordestinos, brasileiros, latinamericanos – porque este destino de Nordeste é a própria condição de NossAmérica.
O significado do vocábulo extrapola os limites do regional; ele é bem mais amplo do que parece, seguindo uma gradação que envolve nordestinos, brasileiros e os latinos da América.
Guriatã: um cordel para menino é o último livro ligado à terra. Composto de 91 poemas e cinco notas que explicam a gênese do livro, o poeta procura resgatar a infância perdida, o “país-paraíso” do engenho Laureano. O xilógrafo Dila, o ilustrador, tentou traduzir plasticamente o conteúdo do texto. Modalidades de cantoria (martelos, toada-alagoana, canções suspirosas, desafios, mourões); poemas dialogados e poemas independentes tornam esse livro o mais intrinsecamente preso ao elemento terra.
Accioly revelou, certa vez, que seguia Tolstoi pelo avesso – “procurava pintar o mundo para pintar a sua aldeia”. Acreditamos que, com a saga do engenho Laureano, o poeta conseguiu realizar esse ideal. O locus amoenus da região canavieira não é privilégio da zona da mata pernambucana: está presente na região da Provença, tão bem retratada por Paul Cézanne em seus quadros; nos riachos e rios, num canto da Champagne, povoado de várzeas, na descrição poética de Bachelard; no mundo encantado do Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato e no país de São Saruê, do poeta popular Manoel Camilo dos Santos.
No que se refere à repercussão crítica, este livro conquistou dois grandes prêmios literários – 1º. lugar no Concurso Nacional Prêmio Fernando Chinaglia (1979), União Brasileira de Escritores – Rio de Janeiro e Láurea Altamente Recomendável para o jovem (1980) Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Guriatã: um cordel para menino já alcançou cinco edições, é o livro mais editado do autor.
Com esta obra, Accioly tenta recuperar a infância através de um texto que é a junção do épico com o lírico; do erudito com o popular; do real com o imaginário.
Na 5ª. edição (2006) – “Comemorativa dos Vinte e Cinco Anos e mais Um”, como costuma se referir o poeta a esta edição, encontramos, na orelha do livro, trechos do parecer de Stella Leonardos, membro do júri do Prêmio Fernando Chinaglia que julgamos pertinente transcrever:
Sobre o livro classificado em primeiro lugar (Guriatã: um cordel para menino - de Marcus Accioly) registrei em meu relatório:
Mestria verbal. O Nordeste inteiro no que tem de mais significativo e autêntico. Uma saga da infância esquecida. Algo de maravilhoso e de tal força que fez a relatora improvisar esses versos:
Ave, guri guriatã!
do cordel voa canto
tão voz de menino pássaro,
tão asa de voz menina
que o coração se ilumina
de hoje –sol luamanhã.
Qual será o motivo da permanência desse livro? São passados 28 anos da 1ª edição e “Guriatã: um cordel para menino” continua encantando a todos. Atribuímos essa permanência à presença dos mitos (populares e eruditos), a beleza poética do texto e a miscigenação dos gêneros ( é um livro épico, lírico e dramático).
Com Guriatã: um cordel para menino, Marcus Accioly traz à tona um passado perdido, um mundo vivido e sonhado e, principalmente, não deixa morrer a criança-poeta ou o poeta-criança que norteia sua vida.