Para tocar tuas mãos:
lirismo e afetividade
Neide Medeiros Santos)
Pus o meu sonho num
navio
e o navio no fundo do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.
(Cecília Meireles. Canção).
Um livro pode atrair o leitor pela capa ou pelo título.
“Para tocar tuas mãos” (João Pessoa: Ideia, 2017) tem a dupla vantagem – atrai
pelo olhar e pelo título sugestivo. Domingos
Sávio, o ilustrador, foi muito feliz ao escolher uma borboleta para ilustrar a
capa. Uma linda borboleta amarela parece flutuar sob um fundo da cor da noite.
O amarelo intenso das asas dianteiras vai esmaecendo e se veste de um tom
alaranjado nas asas posteriores, confundindo-se com o negrume da noite. A riqueza da
ilustração ainda sugere a presença de um olho que tudo vê, tudo observa. O
título do livro em letras vermelhas se destaca no fundo escuro.
“Para tocar tuas mãos” é um livro de crônicas. Três epígrafes demarcam sutilmente uma
tripartição das crônicas. A epígrafe é um paratexto, para usar a terminologia
de Gérard Genette. O paratexto é utilizado para complementar o texto, dar revelo ou mais
beleza. A escolha das epígrafes está
intimamente relacionada com as crônicas. A primeira é de um poeta, Ferreira
Gullar: Porque tudo que acontece,
acontece uma única vez; a segunda é de um cantor/compositor, Djavan: E a tua história, eu não sei. A terceira
é do cronista/poeta: Bela era a vida, no
dia em que a vi.
As crônicas chamam a atenção do leitor por um aspecto
estilístico – frases curtas, bem pontuadas que mais se assemelham a textos
poéticos.
“Pela janela” (p. 48-49) é a descrição de uma viagem ao interior da
Paraíba. Da janela do carro, o observador presencia a paisagem que se descortina
no planalto, avista as serras e as nuvens que parecem colchões de algodão. O
rio, as aves, os animais que cruzam o asfalto, tudo é descrito sob o olhar de
quem sabe que “o essencial é saber ver o que os outros não veem”. Nesta
crônica, o estilo telegráfico de William aproxima-se do mestre Graça – frases curtas,
diretas, pontuação bem marcada.
No céu, flutuam
cinzentos colchões. Sugerem que vai chover no Sertão. O azul rompe no
horizonte. Os colchões transformam-se em flocos de algodão (p.48).
Graciliano Ramos, no livro “S.Bernardo” faz uma descrição
da natureza de forma poética. Utiliza-se
de inúmeras pausas como William.
Estávamos em fim de
janeiro. Os paus-d´arco, floridos, salpicavam a mata de pontos amarelos; de
manhã a serra cachimbava; o riacho, depois das últimas trovoadas, cantava
grosso, bancando o rio, e a cascata em que se despenha, antes de entrar no
açude, enfeitava-se de espuma. (S. Bernardo, 2006, p.109).
“Das coisas íntimas” (p. 83-86) relata o caminhar do
cronista pela rua onde existe um cajueiro. É um cajueiro “mal-ajambrado e
desprezado”, mas dá pouso para passarinhos, abrigo para lagartixas. Não é semelhante
ao cajueiro louvado por Rubem Braga,
bonito, frondoso que dava frutos
deliciosos. Não resistiu a uma noite de
tempestade. A carta da irmã revela que estava carregadinho de flores. Deixou doces recordações para todos. Era quase
um bem de família. Esse é bem mais simples. “...apenas uma árvore sem compostura que
plantaram ou nasceu à toa, no meio da rua (p.83). O sentimento afetivo que une os dois cronistas
é o mesmo.
“Para tocar tuas mãos”(p.117- 119) é uma das crônicas mais enternecedoras do livro. O primeiro parágrafo já é
denunciador do que virá em sequência:
Sou dado a ouvir
histórias. E tenho particular interesse pelas narrativas das pessoas
silenciosas. Aquelas que trazem um oceano de possibilidades nos olhos. E um dialeto
desconhecido nos lábios (p.117).
Esse texto poderia muito bem ser assim apresentado:
Sou dado a ouvir
histórias.
E tenho particular interesse pelas
narrativas de pessoas silenciosas.
Aquelas que trazem um oceano de
possibilidades nos olhos.
E um dialeto desconhecido nos
lábios.
Em vários
momentos do livro, detectamos alusões diretas ou subtendidas à poesia de Cecília
Meireles, uma das preferências poéticas do autor. Nessa mesma crônica, a
referência a Cecília aparece de forma implícita no excerto:
“ ... as mãos que
deixam marcas indeléveis no coração de quem as tocam são as que não têm
perfume” (p.118).
A crônica “Tratado das borboletas” é um debruçar filosófico sobre a
existência da vida. O espaço geográfico
escolhido é a Praça da Paz, fim de tarde. O cronista dirige-se à praça,
senta-se em um banco e aparece uma companheira – uma borboleta. Ela veio de mansinho e pousou na grama. A borboleta e o cronista fitaram-se em
silêncio. E surge a reflexão:
Para conquistar uma
borboleta faz-se necessário saber perdê-la. A borboleta é a encantação do
mistério e da beleza (p. 123).
Esta crônica é dedicada a Cecília Meireles, a poeta que
também amou as flores, a natureza, as borboletas. William e Cecília assemelham-se no gosto pelas
coisas fugidias da vida.
Em “Lamento de náufrago”, o cronista intertextualiza
textos poéticos de Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa e de Lúcio Lins. Lúcio
era o poeta que tinha o mar como leme. Era
como se o mar fizesse parte do seu
próprio corpo. É uma elegia em prosa à
maneira das elegias que Cecília Meireles escreveu para sua avó Jacinta Garcia Benevides.
O mesmo tom de lamento que se sobressai no poema ceciliano perpassa pelas
linhas do texto em prosa de William Costa.
Quarenta e duas crônicas estão presentes no
livro. Impossível seria tecer
considerações sobre todas elas. A pequena amostragem foi suficiente para demonstrar
a presença do lirismo e da afetividade. O leitor sente que existe um entrelaçar
amoroso entre esses dois aspectos. São
crônicas grávidas de afeto.
(
Cabo Branco, de 26 de maio a 02 de junho de 2017).