José
Leite Guerra no reino da literatura popular
( Neide Medeiros Santos)
Passa boi, passa
boiada
Passa o tempo, passa o vento
Passa rápido, passa lento
Passa o velho, passa o novo
Passa o vaqueiro de novo
Passa tocando a boiada.
( Passa, passa, passa...
Adalberto Antônio de Lima. Usinadeletras)
“Boi
de Fogo e Proezas com Geringonça”, de José Leite Guerra, poeta, contista e
cronista paraibano foi um dos livros escolhidos para ser analisado durante o
encontro de Sol das Letras, realizado na Academia Paraibana de Letras. Condizente com o trabalho de Altimar Pimentel,
folclorista que deixou um grande legado a respeito da literatura popular na
Paraíba, os contos deste livro estão intrinsecamente ligados às raízes
populares da literatura nordestina.
O livro está dividido
em duas partes. Na primeira, figuram três contos: “Boi de fogo”, “Comadre
Florzinha” e “Rio Margem Só”. Na segunda parte, encontramos vários contos que
têm como protagonista Geringonça.
Os dois primeiros se prendem às histórias de mistério e
assombração. “Boi de Fogo” guarda afinidades com as histórias do ciclo do boi, muito bem analisadas por Bráulio
Nascimento no ensaio “O ciclo do boi na poesia popular”. Encontramos inúmeros
folhetos de cordel em que a figura do boi e do vaqueiro valente são constantes. Certamente José Leite Guerra
leu esses folhetos, considerados clássicos no gênero da poesia popular.
Mas “Boi de Fogo” apresenta traços distintos dos romances do
ciclo do boi. Se o boi do fazendeiro
português soltava fogo e queimava casas e plantações, se parecia invencível
diante dos vaqueiros não resistiu ao bailado hipnótico do folguedo boi-bumbá.
Como na ficção tudo é possível, um boi de papelão venceu um boi verdadeiro.
“Comadre Florzinha” é uma personagem mitológica da zona da
mata de Pernambucano e Paraíba. É uma cabocla de longos cabelos negros, protege
a natureza e persegue aqueles que caçam
e matam animais. Gosta muito de fumo e
de mel, esses são seus presentes preferidos.
O conto apresentado relata um encontro de
amigos caçadores que partem para uma caçada e discutem se realmente existe essa
personagem protetora dos animais. Na noite escura, tudo é motivo para medo – um
assovio, um farfalhar de folhas, um quebrar de galhos e por fim a desistência
da caçada, tudo por conta da Comadre Florzinha que ninguém sabe se é lenda ou
mito.
O último conto dessa primeira parte – “Rio margem só” –
foge um pouco da temática dos anteriores,
aproxima-se do conto de Guimarães Rosa – “ A terceira margem do rio”. A
contenção linguística se faz sentir a partir do próprio titulo. Outro aspecto que nos chama a atenção é a
presença das reticências, todas alusivas ao rio, como nestes exemplos:
“ Ali ninguém navega...” (p.37)
“ O jeito que tem é aguentar. Pior perder o filho com a fuga
do rio...” (p. 39)
No conto de Guimarães Rosa, o pai se foi em uma canoa rio
abaixo e não mais voltou; no conto de José Leite Guerra é o próprio rio que vai
embora, deixando em todos os ribeirinhos “uma saudade macia, corrediça”. (p.
41).
Após a leitura desse conto, compreendemos o porquê do
título, sem água o rio não tinha as duas margens, era um rio de uma margem só,
um rio seco, um rio que um dia foi rio.
Geringonça é o protagonista dos textos que integram a segunda parte do livro. Se não
chega a ser um pícaro, no sentido estrito da palavra, é um personagem
aventureiro e às vezes mal sucedido em suas diabruras.
Em “Nota dirigida aos leitores”, o autor afirma que
Geringonça é seu filho de criação (literária) e garante que não é de proveta.
Não lhe deu idade nem rosto, mas certamente muitos se identificam com esse
personagem com alma de criança, travesso
e desastrado, um Quixote à moda
nordestina.
“Proezas com Geringonça” é formado por pequenos contos interligados
por um fio condutor, seria uma espécie de “Vidas Secas”, com quadros
desmontáveis que podem ser lidos em conjunto ou de forma separada.
Dentro dos contos desta segunda parte, destacamos “Mistérios
na matinê”.
No Cine Pavão, a gurizada se divertia com os filmes de
mocinhos e bandidos e a programação do dia era o filme “O mistério do Cavaleiro
da Verdade.” Geringonça preveniu os amigos – vai acontecer algo diferente.
Ninguém acreditou. Mal o filme começou, aconteceu o que Geringonça havia
previsto – o ator que fazia o papel de
mocinho apareceu no palco em carne e osso. Todos foram levados pela surpresa de
verem o cavaleiro vivo fora da tela a conversar com as crianças em português. Fato realmente
inusitado.
Aqui abrimos um parêntesis para lembrar que este conto foi
publicado em 1978. Sete anos depois, em
1985, Woody Allen, no filme “A Rosa Púrpura do Cairo”, apresenta-nos um personagem
que sai da tela, apaixona-se por uma espectadora e os dois vivem um grande romance de amor.
Em “Mistérios da
matinê” não existe um grande amor, mas o personagem, representado pelo ator que
tudo vence através da violência, também
sai da tela e conversa com os meninos que eram
apaixonados por filmes de faroeste. Não falta a advertência do
personagem: vim para desmascarar a fantasia da violência.
Conto e filme nos levam a concluir a sábia lição do
Eclesiastes:
O que já foi, isso será. O que já se fez, isso se fará; nada
de novo debaixo do sol. Uma coisa da qual se diz: Eis aqui uma coisa nova,
justamente esta existiu nos séculos que nos precederam.” (Eclesiastes: 1:9-10)
Da leitura desses contos de José Leite Guerra que mescla o popular
com inovação linguística, boa dose de poeticidade, linguagem concisa e saber literário, resta-nos a certeza de que estamos diante de
um escritor que sabe lidar com as palavras de forma consciente e consistente.
Tomo por empréstimo palavras do poeta Manoel de Barros que se
coadunam muito bem com os contos de José Leite Guerra: “O que
dá grandeza ao poeta não é o assunto que ele usa, mas a maneira com que trata o assunto.”
Nota(1) Texto apresentado na
Academia Paraibana de Letras no dia 26 de fevereiro de 2015, no projeto Sol das
Letras.
Nota (2). Estamos reativando o blog: Eu amo literatura. Passaremos a editar textos relacionados com os autores paraibanos.
Referências
BÍBLIA SAGRADA. São Paulo:
Edições Paulinas, 1967.
GUERRA, José Leite. Boi de Fogo e proezas com Geringonça. 2ª
ed. João Pessoa, Manufatura, 2008.
LIMA, Adalberto Antônio de. Passa, passa, passa... usinadeletras.
Disponível em www.usinadeletras.com.br.
Acesso em 05 de abril de 2015, 15:31.
NASCIMENTO, Bráulio et al. Literatura Popular em Verso. Estudos.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Rio
de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986.