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domingo, 5 de abril de 2015

josé leite guerra


José Leite Guerra no reino da literatura popular
( Neide Medeiros Santos)






        
         Passa boi, passa boiada
         Passa o tempo, passa o vento
         Passa rápido, passa lento
         Passa o velho, passa o novo
         Passa o vaqueiro de novo
         Passa tocando a boiada.
         ( Passa, passa, passa... Adalberto Antônio de Lima. Usinadeletras)


“Boi de Fogo e Proezas com Geringonça”, de José Leite Guerra, poeta, contista e cronista paraibano  foi um dos  livros   escolhidos para ser analisado durante o encontro de Sol das Letras, realizado na Academia Paraibana de Letras.  Condizente com o trabalho de Altimar Pimentel, folclorista que deixou um grande legado a respeito da literatura popular na Paraíba,  os  contos deste livro  estão intrinsecamente ligados às raízes populares da literatura nordestina.  
          O livro está dividido em duas partes. Na primeira, figuram três contos: “Boi de fogo”, “Comadre Florzinha” e “Rio Margem Só”. Na segunda parte, encontramos vários contos que têm como protagonista Geringonça. 
         Os dois primeiros se prendem às histórias de mistério e assombração. “Boi de Fogo” guarda afinidades com as histórias do  ciclo do boi, muito bem analisadas por Bráulio Nascimento no ensaio “O ciclo do boi na poesia popular”. Encontramos inúmeros folhetos de cordel em que a figura do boi e do vaqueiro valente  são constantes. Certamente José Leite Guerra leu esses folhetos, considerados clássicos no gênero da poesia popular. 
Mas  “Boi de Fogo”  apresenta traços distintos dos romances do ciclo do boi.  Se o boi do fazendeiro português soltava fogo e queimava casas e plantações, se parecia invencível diante dos vaqueiros não resistiu ao bailado hipnótico do folguedo boi-bumbá. Como na ficção tudo é possível, um boi de papelão venceu um boi verdadeiro.                                                
         “Comadre Florzinha” é uma personagem mitológica da zona da mata de Pernambucano e Paraíba. É uma cabocla de longos cabelos negros, protege a natureza e  persegue aqueles que caçam e matam animais.  Gosta muito de fumo e de mel, esses são seus presentes preferidos.
 O conto apresentado relata um encontro de amigos caçadores que partem para uma caçada e discutem se realmente existe essa personagem protetora dos animais. Na noite escura, tudo é motivo para medo – um assovio, um farfalhar de folhas, um quebrar de galhos e por fim a desistência da caçada, tudo por conta da Comadre Florzinha que ninguém sabe se é lenda ou mito.
         O último conto dessa primeira parte – “Rio margem só” – foge  um pouco da temática dos anteriores, aproxima-se do conto de Guimarães Rosa – “ A terceira margem do rio”. A contenção linguística se faz sentir a partir do próprio titulo.  Outro aspecto que nos chama a atenção é a presença das reticências, todas alusivas ao rio, como nestes exemplos:
         “ Ali ninguém navega...” (p.37)
         “ O jeito que tem é aguentar. Pior perder o filho com a fuga do rio...” (p. 39)
         No conto de Guimarães Rosa, o pai se foi em uma canoa rio abaixo e não mais voltou; no conto de José Leite Guerra é o próprio rio que vai embora, deixando em todos os ribeirinhos “uma saudade macia, corrediça”. (p. 41).
         Após a leitura desse conto, compreendemos o porquê do título, sem água o rio não tinha as duas margens, era um rio de uma margem só, um rio seco, um rio que um dia foi rio.
         Geringonça é o protagonista dos textos que integram  a segunda parte do livro.   Se não chega a ser um pícaro, no sentido estrito da palavra, é um personagem aventureiro e às vezes mal sucedido em suas diabruras.
         Em “Nota dirigida aos leitores”, o autor afirma que Geringonça é seu filho de criação (literária) e garante que não é de proveta. Não lhe deu idade nem rosto, mas certamente muitos se identificam com esse personagem com alma de criança,  travesso e desastrado,  um Quixote à moda nordestina.  
         “Proezas com Geringonça” é formado por pequenos contos interligados por um fio condutor, seria uma espécie de “Vidas Secas”, com quadros desmontáveis que podem ser lidos em conjunto ou de forma separada.
         Dentro dos contos desta segunda parte, destacamos “Mistérios na matinê”.
         No Cine Pavão, a gurizada se divertia com os filmes de mocinhos e bandidos e a programação do dia era o filme “O mistério do Cavaleiro da Verdade.” Geringonça preveniu os amigos – vai acontecer algo diferente. Ninguém acreditou. Mal o filme começou, aconteceu o que Geringonça havia previsto  – o ator que fazia o papel de mocinho apareceu no palco em carne e osso. Todos foram levados pela surpresa de verem o cavaleiro vivo fora da tela a conversar  com as crianças em português. Fato realmente inusitado.
         Aqui abrimos um parêntesis para lembrar que este conto foi publicado em 1978. Sete anos depois,  em 1985, Woody Allen, no filme “A Rosa Púrpura do Cairo”, apresenta-nos um personagem que sai da tela, apaixona-se por uma espectadora e os dois  vivem um grande romance de amor.        
         Em  “Mistérios da matinê” não existe um grande amor, mas o personagem, representado pelo ator que tudo vence através  da violência, também sai da tela e conversa com os meninos que eram  apaixonados por filmes de faroeste. Não falta a advertência do personagem: vim para desmascarar a fantasia da violência.
         Conto e filme nos levam a concluir a sábia lição do Eclesiastes:
         O que já foi, isso será. O que já se fez, isso se fará; nada de novo debaixo do sol. Uma coisa da qual se diz: Eis aqui uma coisa nova, justamente esta existiu nos séculos que nos precederam.”  (Eclesiastes: 1:9-10) 
         Da leitura desses contos de José Leite Guerra que mescla o popular com inovação linguística, boa dose de poeticidade, linguagem concisa e   saber literário,    resta-nos a certeza de que estamos diante de um escritor que sabe lidar com as palavras de forma consciente e consistente.
 Tomo por empréstimo  palavras do poeta Manoel de Barros que se coadunam muito bem com os contos de José Leite Guerra:  “O  que dá grandeza ao poeta não é o assunto que ele usa, mas a maneira  com que trata o assunto.”

Nota(1)  Texto apresentado na Academia Paraibana de Letras no dia 26 de fevereiro de 2015, no projeto Sol das Letras. 
Nota (2).  Estamos reativando o blog: Eu amo literatura. Passaremos a editar textos relacionados com os autores paraibanos.  


         Referências

BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Edições Paulinas, 1967.
GUERRA, José Leite. Boi de Fogo e proezas com Geringonça. 2ª ed. João Pessoa, Manufatura, 2008.
LIMA, Adalberto Antônio de. Passa, passa, passa... usinadeletras. Disponível em www.usinadeletras.com.br. Acesso em 05 de abril de 2015, 15:31.

NASCIMENTO, Bráulio et al. Literatura Popular em Verso. Estudos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986.