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segunda-feira, 26 de junho de 2017

Para tocar tuas mãos










Para tocar tuas mãos: lirismo e afetividade
Neide Medeiros Santos)
            Pus o meu sonho num navio
            e o navio no fundo do mar;
             - depois, abri o mar com as mãos,  
            para o meu sonho naufragar.
             (Cecília Meireles. Canção).

            Um livro pode atrair o leitor pela capa ou pelo título. “Para tocar tuas mãos” (João Pessoa: Ideia, 2017) tem a dupla vantagem – atrai pelo olhar e pelo título sugestivo.  Domingos Sávio, o ilustrador, foi muito feliz ao escolher uma borboleta para ilustrar a capa. Uma linda borboleta amarela parece flutuar sob um fundo da cor da noite. O amarelo intenso das asas dianteiras vai esmaecendo e se veste de um tom alaranjado nas asas posteriores, confundindo-se  com o negrume da noite. A riqueza da ilustração ainda sugere a presença de um olho que tudo vê, tudo observa. O título do livro em letras vermelhas se destaca no fundo escuro.  

            “Para tocar tuas mãos” é um livro de crônicas.  Três epígrafes demarcam sutilmente uma tripartição das crônicas. A epígrafe é um paratexto, para usar a terminologia de Gérard  Genette.  O paratexto é utilizado  para complementar o texto, dar revelo ou mais beleza.  A escolha das epígrafes está intimamente relacionada com as crônicas. A primeira é de um poeta, Ferreira Gullar: Porque tudo que acontece, acontece uma única vez; a segunda é de um cantor/compositor, Djavan: E a tua história, eu não sei. A terceira é do cronista/poeta: Bela era a vida, no dia em que a vi.

            As crônicas chamam a atenção do leitor por um aspecto estilístico – frases curtas, bem pontuadas que mais se assemelham a textos poéticos.
 “Pela janela”  (p. 48-49)  é a descrição de uma viagem ao interior da Paraíba. Da janela do carro, o observador presencia a paisagem que se descortina no planalto, avista as serras e as nuvens que parecem colchões de algodão. O rio, as aves, os animais que cruzam o asfalto, tudo é descrito sob o olhar de quem sabe que “o essencial é saber ver o que os outros não veem”. Nesta crônica, o estilo telegráfico de William aproxima-se do mestre Graça – frases curtas, diretas, pontuação bem marcada.
            No céu, flutuam cinzentos colchões. Sugerem que vai chover no Sertão. O azul rompe no horizonte. Os colchões transformam-se em flocos de algodão (p.48).

            Graciliano Ramos, no livro “S.Bernardo” faz uma descrição da natureza de forma poética.  Utiliza-se de inúmeras pausas como William.  
            Estávamos em fim de janeiro. Os paus-d´arco, floridos, salpicavam a mata de pontos amarelos; de manhã a serra cachimbava; o riacho, depois das últimas trovoadas, cantava grosso, bancando o rio, e a cascata em que se despenha, antes de entrar no açude, enfeitava-se de espuma. (S. Bernardo, 2006, p.109).   

            “Das coisas íntimas” (p. 83-86) relata o caminhar do cronista pela rua onde existe um cajueiro. É um cajueiro “mal-ajambrado e desprezado”, mas dá pouso para passarinhos, abrigo para lagartixas. Não é semelhante ao  cajueiro louvado por Rubem Braga, bonito, frondoso que dava  frutos deliciosos. Não resistiu a uma  noite de tempestade. A carta da irmã revela que estava carregadinho de flores.  Deixou doces recordações para todos. Era quase um bem de família. Esse é bem mais simples.  “...apenas uma árvore sem compostura que plantaram ou nasceu à toa, no meio da rua (p.83).  O sentimento afetivo que une os dois cronistas é o mesmo.

            “Para tocar tuas mãos”(p.117- 119)  é uma das crônicas mais enternecedoras  do livro. O primeiro parágrafo já é denunciador do que virá em sequência:
            Sou dado a ouvir histórias. E tenho particular interesse pelas narrativas das pessoas silenciosas. Aquelas que trazem um oceano de possibilidades nos olhos. E um dialeto desconhecido nos lábios (p.117).
            Esse texto poderia muito bem ser assim apresentado:
            Sou dado a ouvir histórias.
            E tenho particular interesse pelas narrativas de pessoas silenciosas.
            Aquelas que trazem um oceano de possibilidades nos olhos.
            E um dialeto desconhecido nos lábios.  

            Em vários momentos do livro, detectamos alusões diretas ou subtendidas à poesia de Cecília Meireles, uma das preferências poéticas do autor. Nessa mesma crônica, a referência a Cecília aparece de forma implícita no excerto:
            “ ... as mãos que deixam marcas indeléveis no coração de quem as tocam são as que não têm perfume” (p.118).

               A crônica “Tratado das borboletas” é um debruçar filosófico sobre a existência da vida.  O espaço geográfico escolhido é a Praça da Paz, fim de tarde. O cronista dirige-se à praça, senta-se em um banco e aparece uma companheira – uma borboleta.   Ela veio de mansinho e pousou na grama.  A borboleta e o cronista fitaram-se em silêncio. E surge a reflexão:
            Para conquistar uma borboleta faz-se necessário saber perdê-la. A borboleta é a encantação do mistério e da beleza (p. 123).
            Esta crônica é dedicada a Cecília Meireles, a poeta que também amou as flores, a natureza, as borboletas.  William e Cecília assemelham-se no gosto pelas coisas fugidias da vida.

            Em “Lamento de náufrago”, o cronista intertextualiza textos poéticos de Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa e de Lúcio Lins. Lúcio era o poeta que tinha o mar como leme.  Era como se o mar fizesse  parte do seu próprio corpo. É uma elegia em prosa  à maneira das elegias que Cecília Meireles escreveu para sua avó Jacinta Garcia Benevides. O mesmo tom de lamento que se sobressai no poema ceciliano perpassa pelas linhas do texto em prosa de William Costa.    

 Quarenta e duas crônicas estão presentes no livro.  Impossível seria tecer considerações sobre todas elas. A pequena amostragem foi suficiente para demonstrar a  presença do lirismo e da afetividade.  O leitor sente que existe um entrelaçar amoroso entre esses dois aspectos.  São crônicas grávidas de afeto.

( Cabo Branco, de 26 de maio a 02 de junho de 2017).